O professor andava perambulando pela rua; era
um rasgo atravessando-a naquela noite morna e sem luz. Uma voz artificialmente
esganiçada surgia:
Acenda um baseado pra iluminar nossa alma
Esquecida numa cadeira de rodas.
Olhando pra Avenida Aniquilação,
Você só verá rastros de luz
De corações partidos.
Eu queria ser todos eles,
Só para poder ter seus segredos;
porque o mundo foi feito para os mais
fracos.
Os mais fortes nos destroem,
Porque nunca tiveram um coração partido.
Escuridão. Pessoas
para fora, passavam horas a fio querendo mais informações. Uns diziam que era
Jesus voltando, o mundo estava para acabar; outros diziam que era um apagão generalizado,
mas não sabiam exatamente o motivo; alguns falavam em nova guerra mundial, nova
ordem mundial, terapia ocupacional para medir a tolerância do povo, hora de
matar “insetos” —
“ALÔ, ALÔ! MEU POVO, VENHO AQUI PARA DIZER QUE
HOUVE UM APAGÃO EM TODO NORDESTE PROVOCADO POR UM CURTO-CIRCUITO.”
A cantoria não cessava, era o carro de som de Rodofão
53.666. Subia e descia ruas; a região,
na sua maioria, já informada, apagou-se do apagão. Martin Maconha ainda
perambulava pelas ruas. Rodofão 53.666, farol alto, ao vê-lo, disse:
— À essa hora na rua... Está perdido, camarada?
— Estou passeando. Sentido o cheiro do gozo.
Aliás, tinha um casal ali, ó!... no capricho, na praça. Mas o que adianta
descrever se nada podemos ver? — Rodofão 53.666 olha para o motorista e começam
a rir.
— Você está bêbado. Vamos deixar você em casa,
camarada.
— E vocês, tão indo pra onde?
— Vamos para casa.
— Eu também.
— E onde você mora?
— Bem aqui, no inferno.
Rodofão 53.666, fala baixa, para o motorista:
— Deve ser um mendigo, vamos deixar pra lá.
Vamos nos mandar daqui.
— Fique com Deus, senhor. — E o motorista
acelera.
— Deus? Deus é ateu. Ele é o mais ateu de
todos nós.
Seguem seus rumos. Martin Maconha segue sua
caminhada em direção a um casebre vermelho-cabaré; encontro casual com Ju Osso E
Canela. Sabem, só há um tipo de estabelecimento que permanece aberto quando
acontece esse tipo de coisa, de “imprevisto”.
— Vamos lá, meu bem. — Pegando na mão dela e
adentrando um dos quartos.
— O que você vai querer hoje?
— Você não é a Ju Osso E Canela? — Reconhece
que era uma voz diferente.
— Sou Gil da Guenta Três Oitão. A Ju já tá
distribuindo por aí. Qual a de hoje, querido?
— Nada, só com ela. Já me acostumei, sabe como
é. Obrigado. — Saindo do cabaré.
À mercê do vento, Martin Maconha segue viagem,
sem rumo. Ladrões de fios de cobre o vê como uma sombra perdida na escuridão.
Uma nuvem em forma de banana tapa a xana da noite; começa a cantar:
Tá mais escuro que os Uivos de Debord torto.
Tá mais escuro que dormir com Rivotril.
Tá mais escuro que estar de transtorno.
Tá mais escuro que levar no capuz de fuzil.
Imagina ver alguém dormir ao final da rua na
qual se encontrava; coberto por uma casa de muro alto de bolinhas de vento,
apoiando a cabeça num travesseiro de latinhas, arrodeado de sacos pretos. Sua
miopia imaginava um borrão à frente às escuras, mas conforme se aproximava via
aquilo que pensara; menino franzino... não era possível descrê-lo, além do mais
— importaria, afinal, em plena escuridão? só sombras, sombras na escuridão. Sua
dor era um jogo à parte, um jogo que ele não podia jogar; um jogo que era
jogado por ele... até mesmo a esperança que lhe restava era vendida pelos
profissionais desprovidos de alma, songamongamente; agora o menino tem alma, porém
sua esperança tornou-se endividada, pois ela sequer é dele, mas, ao contrário, é
extraída, transformada num jogo por fazedores de estórias dos mais variados
ramos; sua passividade era anônima, servia de base e material para historinha
que não podia ler. Não sabiam do que ele precisava exatamente, só do que eles
precisavam. O jogo é: arrecadamos sua esperança, ou o que restou dela. Um jogo
codificado.
— Posso sentir o cheiro de sua dor de longe,
sei que está acordado. Seria impossível estar no seu lugar, quer dizer, me
imaginar no seu lugar, porque jamais poderia sentir o que você sente. Mas não
vai ser sempre assim, tenho certeza.
— Só queria encontrar minha mãe... me perdi
dela quando ficou tudo escuro... me escondi aqui com as latinhas que consegui
hoje.
— Assim que a luz voltar a gente vai procurar
por ela. Tá com fome? — Tirando um sanduíche embrulhado do casado esfarrapado.
— Certeza senhor? não vai querer nem um pouco?
— É todo seu, meu amigo!
Neste momento Martin Maconha olha para si;
percebe que essa foi a maior vergonha amarga que sentiu em sua vida.
— Sabe... a mãe disse que indo pro colégio vou
poder sair daqui... quero tirar a gente daqui, mas nunca acontece. Tem vez que
não temos o que comer...
— Já ajudei outros colegas seus, de alguma
maneira; posso te ajudar de alguma forma também. Sabe ler e escrever?
— Sei não senhor.
— Tem algum papelão ou papel fácil por aí? Vou
te ensinar mágica! — Sai procurando ao redor do menino, nos sacos pretos.
— Não mexe aí senhor. É pra vender, é do pai. Nossa
garantia... de alguns dias sem passar fome.
— E ele tá onde?
— Foi procurar minha mãe. Mandou eu esperar
ali mais pra baixo e acabei ficando aqui, pois ele num voltou... tive que
improvisar.
— Então vamos improvisar, meu amigo!
Carrocinha passando farol alto para dar um oi, vagabundos. Metralhando luzes pela
rua; sai dois de trás, enquanto a luz crava no menino, no seu novo amigo, nas sacolas
e afins. Pés rachados, calejados, cor negra suada, seca, cor de bosta enferrujada,
eca, eca, cuidado, cor suja, rabugenta, fedida, sebosa, tarada, ladra,
homossexual, burra, escrava, cor de merda —
“Corre, corre, corre!”, pegando na mão do
menino, correm escuridão adentro.
Pum, pam, pow, pam, pam, pum, pow, pum, pow,
pam, pow, pow, pow, pam, pum, pow, pow, pow.
“Mãe... eu tô indo pro colégio.”
— David Vladv