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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Mostrai-vos À Sombra, Assim Vos Vejo Melhor



          Dir-se-ia que morrer sob o manto da escuridão é uma das mortes mais cruéis; dir-vos-ei, violentamente, porém, nestas páginas de sangue sujo, palavras que caminham a fio no fio da navalha. Escorregue, ávido leitor, e andarás para trás com pés de galinha em constelação, não para, frente. Estas páginas peçonhentas não vos serve, ao contrário, envenenai-vos como com vinho de cacos acuminados, rasgando veludos de pele macia cosidos ao guarda-chuva por linhas de pena.
          Durante minha doce vida — quem diria? —, sem sequer uma exceção, vi a razão ser o juiz de si mesma, intelectuais como passivos funcionários da Providência, autenticando e protegendo valores de poderes dominantes; a Justiça não faz o que diz nem diz o que faz, à medida que ela se delicia com seu bajulo de castigos, recorrendo à vingança aos inocentes; pois, foram eles que a elaboraram? Julgariam a razão os inocentes, imanentemente, a fim de, fulminantemente, atacar os valores vigentes? Que direito de Justiça teriam senão esse?
          Foi assim, numa febre maldita de espíritos infernais, que Eduardo Mil Flores tomou gosto pela vida, revelou seu caráter, seu gosto pelo mal! agora não pensava duas vezes antes de libertar seu monstro cruel que escondera; ó monstro, doce veneno! Quando, através do espelho, olhava seus lábios, não tinha mais vergonha de feri-los. Quem ele veria naquele espelho distante como o céu tocar-lhe os lábios? Que ser? Ei-la que se coloca contra seu sangue, como a agulha à veia.  Mais doce que essa mão de unhas compridas só a ruína humana. Ó doce atmosfera! que cheiro de pólvora, de ar morto poluído, de microrrochas ao sabor do vento; tacteando uma presença à distância, à luz do espelho — num filamento que deixa passar, ela far-vos-ia maldições, arrancando-vos a carne em sangue, ó glória! E o que sobrar, à vossa vontade — cheia de infinito à espera, à escuta, à espreita, de sede infernal!
         A morte está nas ruas, a abrir cavoucos, para que pesadelos saiam atrás dos sonhos que um dia a doçura inocente tivera, e levá-los-á consigo para os buracos negros de onde eclodiram, se o medo não cessar. Não mereceis a crueza dos demônios, nem a magnificência dos deuses; caçais vossas migalhas, latindo como cães, e levar-vos-ei sob meu manto, porque vossa estupidez é eterna. Ouvistes, humanos? Que poder teria o veneno da minha pena sem vossos atos? Por onde terá andado a borboleta do cachimbo-casulo que traguei, agora que ela transformou-se? Espero que não volte, além do mais. Continue a flutuar, embriagada no espaço-tempo. 



Duck Isidore

                                                                                                                                            

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Martin Maconha



          O professor andava perambulando pela rua; era um rasgo atravessando-a naquela noite morna e sem luz. Uma voz artificialmente esganiçada surgia:

Acenda um baseado pra iluminar nossa alma
Esquecida numa cadeira de rodas.
Olhando pra Avenida Aniquilação,
Você só verá rastros de luz
De corações partidos.

Eu queria ser todos eles,
Só para poder ter seus segredos;
porque o mundo foi feito para os mais fracos.
Os mais fortes nos destroem,
Porque nunca tiveram um coração partido.

          Escuridão. Pessoas para fora, passavam horas a fio querendo mais informações. Uns diziam que era Jesus voltando, o mundo estava para acabar; outros diziam que era um apagão generalizado, mas não sabiam exatamente o motivo; alguns falavam em nova guerra mundial, nova ordem mundial, terapia ocupacional para medir a tolerância do povo, hora de matar “insetos”

          “ALÔ, ALÔ! MEU POVO, VENHO AQUI PARA DIZER QUE HOUVE UM APAGÃO EM TODO NORDESTE PROVOCADO POR UM CURTO-CIRCUITO.”

         A cantoria não cessava, era o carro de som de Rodofão 53.666.  Subia e descia ruas; a região, na sua maioria, já informada, apagou-se do apagão. Martin Maconha ainda perambulava pelas ruas. Rodofão 53.666, farol alto, ao vê-lo, disse:

          — À essa hora na rua... Está perdido, camarada?

       — Estou passeando. Sentido o cheiro do gozo. Aliás, tinha um casal ali, ó!... no capricho, na praça. Mas o que adianta descrever se nada podemos ver? — Rodofão 53.666 olha para o motorista e começam a rir.

          — Você está bêbado. Vamos deixar você em casa, camarada.

          — E vocês, tão indo pra onde?

          — Vamos para casa.

          — Eu também.

          — E onde você mora?

          — Bem aqui, no inferno.

          Rodofão 53.666, fala baixa, para o motorista:

          — Deve ser um mendigo, vamos deixar pra lá. Vamos nos mandar daqui.

          — Fique com Deus, senhor. — E o motorista acelera.

          — Deus? Deus é ateu. Ele é o mais ateu de todos nós.

          Seguem seus rumos. Martin Maconha segue sua caminhada em direção a um casebre vermelho-cabaré; encontro casual com Ju Osso E Canela. Sabem, só há um tipo de estabelecimento que permanece aberto quando acontece esse tipo de coisa, de “imprevisto”.
          — Vamos lá, meu bem. — Pegando na mão dela e adentrando um dos quartos.
          — O que você vai querer hoje?
          — Você não é a Ju Osso E Canela? — Reconhece que era uma voz diferente.
          — Sou Gil da Guenta Três Oitão. A Ju já tá distribuindo por aí. Qual a de hoje, querido?
          — Nada, só com ela. Já me acostumei, sabe como é. Obrigado. — Saindo do cabaré.
          À mercê do vento, Martin Maconha segue viagem, sem rumo. Ladrões de fios de cobre o vê como uma sombra perdida na escuridão. Uma nuvem em forma de banana tapa a xana da noite; começa a cantar:

Tá mais escuro que os Uivos de Debord torto.
Tá mais escuro que dormir com Rivotril.
Tá mais escuro que estar de transtorno.
Tá mais escuro que levar no capuz de fuzil.

         Imagina ver alguém dormir ao final da rua na qual se encontrava; coberto por uma casa de muro alto de bolinhas de vento, apoiando a cabeça num travesseiro de latinhas, arrodeado de sacos pretos. Sua miopia imaginava um borrão à frente às escuras, mas conforme se aproximava via aquilo que pensara; menino franzino... não era possível descrê-lo, além do mais — importaria, afinal, em plena escuridão? só sombras, sombras na escuridão. Sua dor era um jogo à parte, um jogo que ele não podia jogar; um jogo que era jogado por ele... até mesmo a esperança que lhe restava era vendida pelos profissionais desprovidos de alma, songamongamente; agora o menino tem alma, porém sua esperança tornou-se endividada, pois ela sequer é dele, mas, ao contrário, é extraída, transformada num jogo por fazedores de estórias dos mais variados ramos; sua passividade era anônima, servia de base e material para historinha que não podia ler. Não sabiam do que ele precisava exatamente, só do que eles precisavam. O jogo é: arrecadamos sua esperança, ou o que restou dela. Um jogo codificado.

          — Posso sentir o cheiro de sua dor de longe, sei que está acordado. Seria impossível estar no seu lugar, quer dizer, me imaginar no seu lugar, porque jamais poderia sentir o que você sente. Mas não vai ser sempre assim, tenho certeza.

          — Só queria encontrar minha mãe... me perdi dela quando ficou tudo escuro... me escondi aqui com as latinhas que consegui hoje.
        — Assim que a luz voltar a gente vai procurar por ela. Tá com fome? — Tirando um sanduíche embrulhado do casado esfarrapado.
          — Certeza senhor? não vai querer nem um pouco?
          — É todo seu, meu amigo!
          Neste momento Martin Maconha olha para si; percebe que essa foi a maior vergonha amarga que sentiu em sua vida.
          — Sabe... a mãe disse que indo pro colégio vou poder sair daqui... quero tirar a gente daqui, mas nunca acontece. Tem vez que não temos o que comer...
          — Já ajudei outros colegas seus, de alguma maneira; posso te ajudar de alguma forma também. Sabe ler e escrever?
          — Sei não senhor.
          — Tem algum papelão ou papel fácil por aí? Vou te ensinar mágica! — Sai procurando ao redor do menino, nos sacos pretos.
          — Não mexe aí senhor. É pra vender, é do pai. Nossa garantia... de alguns dias sem passar fome.
          — E ele tá onde?
          — Foi procurar minha mãe. Mandou eu esperar ali mais pra baixo e acabei ficando aqui, pois ele num voltou... tive que improvisar.
          — Então vamos improvisar, meu amigo!
          Carrocinha passando farol alto para dar um oi, vagabundos. Metralhando luzes pela rua; sai dois de trás, enquanto a luz crava no menino, no seu novo amigo, nas sacolas e afins. Pés rachados, calejados, cor negra suada, seca, cor de bosta enferrujada, eca, eca, cuidado, cor suja, rabugenta, fedida, sebosa, tarada, ladra, homossexual, burra, escrava, cor de merda —
          “Corre, corre, corre!”, pegando na mão do menino, correm escuridão adentro.
          Pum, pam, pow, pam, pam, pum, pow, pum, pow, pam, pow, pow, pow, pam, pum, pow, pow, pow.
          “Mãe... eu tô indo pro colégio.”

  David Vladv